Oitenta e sete anos de idade. Viúvo. Artista plástico; mais escultor do que pintor para uns, mais pintor do que escultor para outros. Mestre na arte de criar, o velho Carnelosso carrega no corpo desgastado a marca mais significativa que o artista pode almejar: a dignidade aflorando e que canta para o mundo o quanto sua arte deve ser respeitada.
Fomos recebidos por Carnelosso no amplo living de sua casa. Foi impactante. As salas sociais de sua residência estão forradas de telas belíssimas. Pintura consistente e marcante, aparece nas naturezas mortas, figuras, interiores e paisagens, que contam a história de uma vida. São obras de um grande artista, que as acariciam como se fosse colecionador.
Ao adentrarmos em seu atelier, sentimos a atmosfera de templo sagrado. Moldes de gesso que se transformaram em esculturas de bronze; modelos de medalhas e centenas de telas forram as paredes e ocupam cada espaço do amplo atelier.
Nosso primeiro contato foi mágico: não imaginávamos encontrar obra tão extensa e tão diversificada em estilo. Atônitos, tornamo-nos meninos encantados sem saber o que priorizar. As visitas posteriores tornaram-se mais alentadoras, pois Carnelosso passou a comentar sua pintura. Foi quando entendemos que a arte desse grande pintor e parte de seu acervo, deveriam ser estudados e analisados pelos artistas e pintores contemporâneos. Esta é a razão desta exposição. Escolhemos a Associação Paulista de Belas Artes, devido aos vínculos afetivos de Carnelosso para com essa entidade.
Na retrospectiva encontraremos trabalhos das várias fases de sua vida artística. Representamos o período de seu aprendizado até suas últimas pinturas. Carnelosso vive da arte para a arte e a apresentação destes trabalhos é homenagem que prestamos não só a ele, mas principalmente, a todos os artistas contemporâneos. As retrospectivas dos grandes artistas rareiam e os mais jovens ficam, muitas vezes, sem parâmetros na orientação de suas obras. Temos a convicção que a nova geração de artistas encontrará em Carnelosso modelo a ser seguido.
Conta senhora Rosa, mãe de Carnelosso, que as calçadas de Itápolis em São Paulo, foram riscadas e marcadas pelo carvão, que o menino de 2 anos de idade, insistia em esfregar no chão. O carvão era, já, o início de manifestação artística de Glycério Geraldo Carnelosso, que nasceu em 5 de dezembro de 1921.
Seu pai, Luiz Carnelosso, era sapateiro, e sua mãe, Rosa Furlan Carnelosso, cuidava da casa e dos dois filhos. Em 1931 resolveram sair de Itápolis e transferiram-se para São Paulo. O objetivo era dar aos filhos a oportunidade de estudo. Em São Paulo seu pai tornou-se oficial sapateiro, trabalhando em várias fábricas de calçados. Relata Carnelosso, que sua mãe Rosa tornou-se operária para aumentar a renda familiar, o que possibilitou o custeio do estudo dos filhos. Como tecelã, trabalhou anos no Lanifício Santa Rosa e só deixou a fábrica quando Carnelosso, na década de 40, como medalhista recebeu suas primeiras remunerações.
Moravam na zona leste, no Tatuapé e Carnelosso estudou no grupo escolar Erasmo Braga. Aos 15 anos já era exímio desenhista e uma professora de sua irmã levou-o até o Professor Alfredo de Barros Santos, então Diretor do Instituto Profissional Masculino, situado na rua Piratininga. Ao perceber o talento de Carnelosso, o Diretor abriu imediatamente vaga e durante anos o jovem foi orientado e estimulado por dois grandes mestres: José Barchitta, pintor e Laurindo Galante, escultor. Formou-se em 1941 e guarda profunda gratidão ao Instituto e aos dois mestres.
De José Barchitta, conta que era exímio artista. De formação acadêmica, adquirida na Europa, era rígido quanto ao ensino, mas profundamente nutriente. Sentiu em Carnelosso talento nato e dava a ele tratamento especial quanto ao ensino. Obrigava-o a desenhar, desenhar e desenhar… Seus cadernos de desenho, cuidadosamente guardados em seu atelier, ilustram perfeitamente a orientação acadêmica que Barchitta impunha ao jovem. Conta Carnelosso, que Barchitta foi medalha de ouro em pintura em um dos salões de Roma, mas parece não ter encontrado nos pintores brasileiros reconhecimento e que o consideravam apenas “ possuidor de jeito para pintura” . Desgostoso deixou de expor e dedicou-se tão somente ao ensino.
Barchitta, ministrava conteúdo diferenciado para Carnelosso. Certa vez colocou um postal de uma obra no primeiro andar do Instituto e exigiu que o aluno estudasse a pintura através do postal e depois se dirigisse para o segundo andar onde deveria repetir a figura. Carnelosso relata que a grande dificuldade consistia em repetir as tonalidades usadas pelo autor, pois no percurso entre o primeiro e o segundo andar perdia a noção exata das cores. Era verdadeiro exercício neurolinguístico, tentando incrementar sua memória fotográfica. Encontramos em seu atelier cópias de afrescos de pintores renascentistas e naturezas mortas pintadas com modelo ao vivo.
Ao mesmo tempo, Laurindo Galante trabalhava-o na escultura. Sua jornada no Instituto era de horário integral, mas dedicava mais tempo à escultura. Compensava a maior dedicação à escultura no Instituto, pintando incessantemente à noite em casa. Ambos Barchitta e Laurindo ajudavam a formar o caráter do jovem discípulo e mostravam-lhe que a arte, expressada na pintura e na escultura, devia ser profundamente respeitada e adequadamente trabalhada.
Terminado o curso, professor Laurindo indica-lhe a firma F. Montini para desenvolver trabalho de escultura para medalhas. Com F. Montini desenvolveu sua técnica e aprimorou sua habilidade, tornando-se o principal medalhista de São Paulo.
Foi aluno de Ângelo Simeone. Tornaram-se amigos e conviveu com o pintor Italiano até a sua morte. Viajou para a Europa com Simeone e mais três amigos pintores, Procópio, Zorline e Pelegata. Na Itália, pintou ao ar livre e guarda excelentes recordações dessa época, bem como magníficas telas pintadas no Velho Mundo.
Viajou pelo Brasil e tela, tinta e pincéis transformaram-se na objetiva que fotografou casarões, igrejas, ruas e costumes do povo brasileiro. Em Ouro Preto, encontrou grupo de alunos pintores, da então famosa Colette Pujol. Uma de suas alunas era a pintora Maria Carolina Sampaio. O cenário romântico da cidade e a pintura trabalhada como amálgama na arte de ambos, resulta em casamento.
Carnelosso refere-se à Maria Carolina como tendo sido dócil, amorosa e profundamente companheira. Foi retratada inúmeras vezes por ele, mas trabalho primoroso, destaca-se entre muitos, na tela 90×120, em que o artista consegue resultado ímpar. Impressionado ante esse trabalho, o colecionador F. Damico descreve o que sentiu ao pintor Alexandre Reider: “Acredito que os traços de Maria Carolina tenham sido minuciosamente respeitados, mas o que sinto é que o som, o sopro e o movimento da Vida, não sei como, abandonam a tela e me envolvem. De repente, torno-me íntimo sem a conhecer; torno-me igual embora tão diferente e em estado tão diverso. Só a delicadeza da arte do velho Carnelosso foi capaz de ressuscitar sua esposa naquele momento. A arte é milagrosa”.
João Marcos é o único filho do casal. Casado com Maria Cristina deram a Carnelosso dois netos: Lucas e Bruno. A família o envolve com muito carinho e muita proteção.
Carnelosso é poeta. Poeta não machuca as palavras. Poeta acaricia as palavras. Carnelosso é o poeta das tintas. Trabalha delicadamente com as cores e sua pincelada é suave, homogênea e estudada, o que torna sua composição profundamente agradável e envolvente. É romântico, e sua sensibilidade transparece no cenário de sua pintura. É dono de uma pintura aconchegante e carregada de técnica e virtuosismo, mas sempre apresentada de maneira muito singela.
O carvão nas mãos do pequeno menino, transformou-se em pincel nas mãos do jovem Carnelosso, que produziu para nós, amantes da boa pintura, essa retrospectiva agora apresentada.
Francisco Damico